terça-feira, 10 de outubro de 2023



Em 1855 uma questão paroquial subiu ao
 Supremo Tribunal Administrativo 
Paroquianos de S. Domingos ganham a causa

 


1| Pé de Altar. Na época do liberalismo o Clero como que passou a função pública. Mas o seu sustento manteve-se nas paróquias, conforme carta de lei de 5/3/1838, (DG de 13/3) e carta de lei de 20/7/1839, (DG de 30/7). Em todos os concelhos do Reino (no nosso caso Pedrógão Grande) havia uma Junta de Arbitramento para deliberar sobre o montante anual da «Côngrua» (quantia arbitrada aos párocos para a sua decente sustentação), considerando o «Pé de Altar» (soma das taxas pagas pelos paroquianos por serviços religiosos prestados: batizados, casamentos, cerimónias fúnebres, outros) e, consoante o caso, uma «Derrama» (imposto a repartir pelos paroquianos na proporção dos respetivos rendimentos). O montante da côngrua era fixado anualmente para o ano económico seguinte. Começava a ser preenchido pelo estimado Pé de Altar. Não chegando, derrama sobre os paroquianos. 


2| O caso concreto. Corria o ano de 1839 quando a Junta de Arbitramento (pressupondo-se um Pé de Altar de 100$000 réis) fixou a côngrua do pároco em 160$000 réis e a côngrua do coadjutor em 60$000 réis, (sessão de 5/12). Havia então na Paróquia de São Domingos pároco e coadjutor. Sucede que no ano seguinte (1840) deixou de haver coadjutor. Daí que em sessão de 18/1/1841 a Junta de Arbitramento (avaliando agora o Pé de Altar em 106$000 réis), atendendo a que o pároco passara a acumular o serviço do coadjutor, atribuiu-lhe também a côngrua deste, ficando assim o pároco com a côngrua cumulada de 226$000 réis (166$000 + 60$000 = 226$000). Cumulado o serviço, cumulada a côngrua. Sendo, porém, a acta omissa quanto a este ponto. Na verba do coadjutor colocara-se um traço de tinta e só posteriormente é que sobre este traço e da parte da margem da acta foi lançada a seguinte nota: «Não há, mas atendeu-se na côngrua do pároco». Sem ressalva alguma no corpo da acta. Nos anos seguintes as actas umas referem não haver coadjutor e outras são omissas. E assim se manteve - cumulado o serviço, cumulada a côngrua - durante os doze anos seguintes 1841/1853, suposto que tudo em paz paroquial. Até que em 1853 o prelado diocesano nomeia um novo coadjutor para a Paróquia de São Domingos das Castanheira. E vai daí a Junta de Arbitramento de Pedrógão (sede de concelho) em sessão de 25 de junho, atribui ao novo coadjutor uma côngrua no montante de 37$660 réis, deixando ao pároco a mesma soma cumulada de 226$000 réis.  

E aqui surge a questão!

Entendem os paroquianos que não podem ser onerados com duas côngruas para o coadjutor, uma fixada em 1841 no montante de 60$000 réis e outra fixada agora em 1853 no montante de 37$660 réis. Daí que no ano seguinte 1854 alguns paroquianos tenham reclamado perante a Junta de Arbitramento. Mas esta indeferiu tudo. 

Inconformados os paroquianos recorreram então para o Conselho de Distrito (Leiria) que, por Acórdão de 28/9/1855, acolheu ambas as pretensões, decidindo que a verdadeira côngrua do Pároco era de 166$000 réis e que o valor do Pé de Altar era agora de 137$360 réis conforme, aliás, os próprios documentos paroquiais.  

   

3| Conselho de Estado. Inconformado é agora o pároco a interpor recurso para o Conselho de Estado - Secção de Contencioso Administrativo, (hoje Supremo Tribunal Administrativo. Pugnando, essencialmente: a| Pela manutenção do Pé de Altar em 106$000 réis por imperativo legal. b| Pela manutenção da sua côngrua nos mesmos 226$000 réis, invocando, além do mais, a falsidade daquela nota na acta de 1841.

O processo correu seus trâmites e a final o Conselho de Estado proferiu elaborado parecer no sentido de: 1) Dar razão ao Pároco no tocante à manutenção do Pé de Altar em 106$000 réis, visto e achar congelado por Lei geral de 8/11/1841. (A razão era evitar a luta anual entre párocos e fregueses); 2) Dar razão aos paroquianos quanto às côngrua do pároco ser apenas de 166$000 réis (pé de altar base de 106$000 réis), confirmando, nesta parte, o acórdão distrital. 

Quanto à alegada falsidade a competência para dela conhecer cabia aos tribunais civis. Como o pároco não se disponibilizou a invocá-la no foro civil o tribunal administrativo dela não tomou conhecimento.

Quanto ao desdobramento das duas côngruas ponderou o Conselho de Estado:  

«Considerando, quanto à dedução da côngrua do coadjutor da quantia assinada à côngrua do pároco, que a grande elevação da côngrua do pároco arbitrada na sessão da Junta de 18 de janeiro de 1841, sobre a do ano antecedente, tem natural e obviamente a explicação que foi expressada na nota da respetiva acta, não se mostrando justificada por nenhum outro princípio».

Quer dizer: «em 1841 foi incluída na côngrua do pároco a do coadjutor, pela contemplação de que, sem o auxílio deste, satisfaria aquele todo o serviço da Igreja». 

E assim«devia ter cessado na côngrua do pároco a parte correspondente à côngrua do coadjutor, logo que cessou o fundamento por que ela lhe acrescera».

Ou seja: nem o Pároco nem a Junta apresentaram outro fundamento capaz de afastar a cumulação contida naquela na nota na acta de 18/1/1841.Com este parecer do Conselho de Estado concordou o rei D. Pedro V, (reinado 1853-1861), sendo o Acórdão assinado no Paço das Necessidades em 15/12/1858.  


4| Presbytero. O pároco recorrente neste processo P. Manoel Joaquim Rodrigues Corrêa foi Pároco titular da Paróquia de S. Domingos durante cerca de 37 anos (1854-1891). Registos de batismo escritos e assinados por si.1  No DG nº 223 de 22/9/1857 está publicada a sua apresentação na Igreja de São Domingos da Castanheira do Pedrógão. E por decisão publicada no DG nº 262 de 19/11/1891 foi-lhe reconhecido o direito à aposentação, com base na referida côngrua de 166$000 réis. Tinha 67 anos em janeiro de 1891. (Existe alguma atividade sua já em finais 1853 e começos de 1892).

 

5| Prudência. Uma côngrua paroquial de 226$000 réis mantida durante doze anos consecutivos pode criar em algumas pessoas a convicção – certa ou errada - de valor individual. A composição das Juntas de Arbitramento vai rodando no tempo e por vezes os novos elementos nem sempre conhecem os casos, se não lhes forem devidamente transmitidos. Por isso importa que as actas sejam devidamente elaboradas, conferidas e assinadas.  Podem vir a ser documentos essenciais.

Agora quanto ao coadjutor impressiona no ano de 1839 ser-lhe atribuída a côngrua de 60$000 réis, valor máximo a passar (160$000: 3=53$333 réis), e, doze anos volvidos (1853) a côngrua mínima de 37$660 réis. Tudo na vigência do mesmo quadro legal: «máximo 1/3, mínimo 1/6 da côngrua do Pároco» (Artº 3º da Carta Lei de 20/7/1839). Curioso o critério da Junta 1853 que, atribuindo ao coadjutor a côngrua matemática mínima, estava implicitamente a significar que a outra soma 226$000 réis era a côngrua do Pároco (226$000: 6 = 37$666). Na alegação de recurso também o pároco alegara (seu advogado) que as côngruas do pároco e do coadjutor são individuais e separadas. E se a Junta atribuiu ao coadjutor uma côngrua separada (37$660) é porque a outra (226$000) era a sua. Trata-se dum argumento circular, visto que o que estava em causa era saber do fundamento daquele montante 226$000 réis. Quanto ao Pé de Altar interessava aos párocos ser estimado pelo baixo. Porque a côngrua era preenchida pelo pé de altar + derrama.  Pé de altar incerto, derrama certo.  

 

 6| Leitura integral. O acórdão, relatado pelo Conselheiro José de Cupertino de Aguiar Ottolini, foi assinado no Paço das Necessidades em 15/12/1858 pelo =REI= e pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, António José d´ Ávila. Depois dos «conformes» foi publicado no «Diário do Governo» nº 48 de 25 fevereiro 1859 (p.250) disponível on line no portal DIGIGOV (digigov cepese), clicando em jornais e seguindo na barra para a data indicada. 

  

1|Registos de batismo disponíveis on line seguindo: Arquivo Distrital de Leiria – Fundos e coleções – Paroquiais - Castanheira de Pera. Coentral. (selecionando o ano e manuseando o visualizador que surge à direita). 

Francisco H. Neves



(Texto in «O RIBEIRA DE PERA», edição impressa de 30/9/2023). 






sexta-feira, 4 de agosto de 2023




«CEIROQUINHO - SUA CRUZ E CAPELA » 

Novo livro de Monsenhor Cónego Aurélio de Campos




3º livro.2022

1| Dedicatória. Depois de dar à estampa essa obra enorme «SEMINÁRIO DE COIMBRA – Subsídios para a sua História», Coimbra 2014, (DL 381766/14) e depois do livro «TRAÇOS DE UMA VIDA - Memórias e reflexões pessoais», Coimbra 2018, (DL 449378/18), Monsenhor Cónego Aurélio de Campos veio agora dedicar à sua aldeia, na freguesia de Fajão - Pampilhosa da Serra, este pequeno/grande livro de 160 páginas intitulado: «CEIROQUINHO – Sua Cruz e Capela», Coimbra 2022, (DL495888/22).


Nascido em 11 de Setembro de 1931, esta é a dedicatória que Monsenhor oferece à sua aldeia natal, no dia em que completou 90 anos de idade, lembrando que os “tempos passados só fazem história sendo memorizados e refletidos”: 


«Dedico este livro: Ao povo de Ceiroquinho, nossos heroicos avós, que ao longo de séculos pelo trabalho austero nos legaram uma verdadeira epopeia de sacrifícios dolorosos, de coragem, de constância, de fé, de afeto por esta terra ingrata de benesses, dura de afeições, áspera no amanho, a exigir o suor abundante dos seus filhos para os poder sustentar, tornar felizes e construir a aldeia que somos. Ceiroquinho, 11 de setembro de 2021».

 

2| Capela. Quanto à capela sempre teve o Santo António como padroeiro.  Neste livro Monsenhor faz desenvolvida história da capela velha, (sec. XVII-XVIII), na baixa de Ceiroquinho; e da capela nova (1923) na alta da povoação, ilustrada com sucessivas fotos duma e doutra. Capela nova totalmente renovada em 1990/1991.    As estruturas. O simbolismo litúrgico do interior e a sua explicação. As várias imagens de Santos oferecidas por Ceiroquinhenses, alguns emigrantes, como expressão da sua fé.  Os sinos, o cálice de prata, o relógio mecânico, o oratório tudo comentado.  


 3| «Sua Cruz».  Em frente à povoação de Ceiroquinho, (nome derivado do rio Ceira), existe uma assentada (planalto) imemorialmente denominada de «Cruz».  Não porque aí existisse cruz alguma, mas porventura porque aí se cruzam caminhos de acesso a outros lugares ou porque aí se cruzam olhares contemplando o céu, os montes, os campos cultivados…  Porém, Monsenhor oferece aqui uma outra interpretação mais filosófica: o nome de «Cruz» advém-lhe duma razão-símbolo mais abstrata e misteriosa, mas profética e humana. Tal assentada de íngreme e difícil acessosimboliza a cruz que cada Ceiroquinhense no peregrinar da vida terá de transportar.   “Na sua ou noutra terra, deslocado ou emigrante, o seu dever e sua missão são sempre responsabilidades dolorosas, verdadeiras cruzes, embora aceites e abraçadas com empenho e alegria”. E concretiza com o testemunho de várias famílias que, no mundo em que se inseriram, “amavam a sua cruz e com ela triunfaram, construíram glória e morreram sendo felizes".

 

4| Bons frutos. “A árvore boa dá bons frutos”.   Esta é outra mensagem do livro. “A comunidade paroquial de Fajão ofereceu à Igreja e ao mundo elementos que vieram colaborar na eficácia do progresso e cultura do povo português, dos cristãos e doutras pessoas da humana e universal sociedade”. São mencionados casos concretos de Monsenhores, Cónegos, Padres, pintores, professores, escritores, empresários e outros cidadãos que “foram verdadeiros doutores na experiência do viver e saber”.

 

5| 160 anos de mordomos! Espaço notável é estoutro em que se descrevem as festas religiosas (partilha de alegria, afetos, amizade, entre famílias e pessoas) e em que Monsenhor faz expressa menção do nome, um a um, de todos os mordomos que fizeram a festa da Capela de Ceiroquinho durante os anos 1860 a 2020. Intercalando os párocos que se foram sucedendo e ocasionais intervenções na Capela. Trabalho notável de pesquisa.

 

6| Santo António, «Tenente-general».  Neste último espaço do livro faz-se um resumo da vida de Santo António (1192 – 1231). Lisboa (Fernando de Bulhões), Coimbra (Frei António), Marrocos, Itália onde se notabilizou como pregador e foi canonizado.  E também duma faceta peculiar deste Santo. É que séculos mais tarde Santo António é nomeado patrono de várias unidades, com assim iniciando a sua “carreira militar”. «Em 1668 Santo António “assentou praça” no 2º Regimento de Infantaria de Lagos, por alvará de D. Pedro. Em 1683 era promovido a Capitão pelos bons serviços militares. Em 1777 D. Maria promove-o a Major e em 1780 a mesma Rainha fá-lo Tenente-General».

 

 7| Castanheira de Pera. O P.  Aurélio de Campos foi Pároco de Castanheira e Pera durante 17 anos (1960-1978). Tempo em que aqui desenvolveu intensa atividade pastoral. Foi ainda fundador e dirigente do Externato São Domingos, porto de abrigo e embarque escolar para muitos jovens que, nesse tempo, ficariam em terra por falta de meios.  Por todo o concelho de Castanheira de Pera também existem capelas, cada qual com seu orago, sua «cruz» e seus bons frutos (Santo António da Neve, Camelo, Pera, Sapateira, Gestosa Cimeira, Gestosa Fundeira, Troviscal, Moita, Sarzedas de S. Pedro). Em todas o P. Aurélio celebrou, organizou, reconciliou. E em que agora este seu livro ainda pode trazer algo de motivador.  

8| Leitura. O livro encontra-se disponível nas Bibliotecas Municipais da Pampilhosa da Serra e de Castanheira de Pera. Nas Bibliotecas depósito legal (DL), nomeadamente, Biblioteca Nacional (BNP) em Lisboa (Campo Grande). E no Gabinete da Comissão de Melhoramentos de Ceiroquinho.  

Fn

   In «O RIBEIRA DE PERA» edição impressa de 31/7/2023


quinta-feira, 13 de julho de 2023

 



Gentílicos locais … «Pedras Negras nos Coentrais»

… «honrados no Fontão» … … "fidalgos na Ortiga" …

«In aquilone per viam que ducitur ad sanctaren»



 

1|Listagem. De autor desconhecido e transmissão oral existe neste concelho uma espécie de dicionário desordenado, uma listagem de “gentílicos” locais que terá surgido na I República, porventura numa acção de carnaval ou de teatro (jograis).  A referência a «cidadãos», «combate» e «liberais» aponta para essa época. Tempo do qual um reverendo cónego1 observou: «Quando nasceu a República, tudo passou a ser cidadão». «O padre… o professor, o médico, o advogado, tudo cidadão fulano, sem mais aparelho».  E nem «certos particulares… dispensavam a alcunha».

A referência a «combate na Castanheira» significará as lutas político-partidárias. Já referência a «liberais» andará pelas liberdades então vivenciadas. A lista terá tido ao longo do século outras versões.  Mas é esta listagem (caixa) que se conhece impressa.   E também codificada.2 Outras versões terá havido porquanto alguns cidadãos não se revendo no locativo catalogado deram um chega pra lá, invocando o seu outro.  Recordamos há dezenas de anos escutar seniores do lugar dizerem-se de «honrados no Fontão». Assim como recordamos de fontes orais dispersas o gentílico "fidalgos na Ortiga". A serra da Ortiga, em cujo planalto se situa o Parque Eólico é hoje visível de todo o concelho. Não é conhecido nesta área do município qualquer referência a nobreza donde provenha fidalguia. Mas, como transmite universal provérbio «não há fumo sem fogo». Daí o partir-se em busca dum eventual fundamento.

 

2|Primórdios. Pós-terramoto de 1755, num conhecido relatório paroquial de 1758, a Ortiga está citada duas vezes, sendo uma delas como lugar serrano.3 Com «lugar» no sentido de povoação. Enraizada tradição oral proclama que «o Fontão veio da Ortiga». Donde a Ortiga ser anterior ao Fontão. Fontão que já existia em 1502, quando um seu morador, Vasco Esteves,4 interveio no processo da criação da Paróquia de S. Domingos da Castanheira. Como povoação afigura-se que a origem da Ortiga de Cima remonta aos primórdios da nacionalidade, mercê de dois fatores locais:  abundância de água e proximidade da via militar (Sec. XII).

Atualmente, visto de fora, é tudo Ortiga, (Ortiga de Cima, Ortiga de Baixo, Cova do Pião, Porto Salgueirinho). Porém, as courelas e cardenhas erguidas na Cova do Pião e Porto Salgueirinho nada têm a ver com a (histórica) Ortiga de Cima, porquanto terão sido erigidas séculos mais tarde, já a mando do Fontão. Sendo certo existirem hoje na área dois espaços comuns:  o caminho da Ortiga subindo desde o Vale das Figueiras e, de inverno, o córrego da Ortiga que, escoando da vertente leste do parque eólico, corre por Ortiga de Cima, Ortiga de Baixo, Cova do Pião, Porto Salgueirinho, Corredor, Dordio onde se junta ao ribeiro do Fontão, para desaguar na Ribeira de Pera.           

 

3|Água. Hoje muito está debaixo dos eucaliptos. Mas ainda permanece na memória dos seniores, a pouca distância do parque eólico, uma abundante nascente de água à superfície de tal modo que o município instalou canalização para abastecimento da vila. Ainda hoje ativa é a «mina das Fontanheiras». À direita, mais além, uma área de prado verde (pastagem) com outra fontanheira a borbulhar.  Mais abaixo, nas courelas, outras nascentes de regadio.  A água foi sempre essencial á fixação das gentes.   


4|Via militar. Do perímetro do foral de Pedrógão 1206, concedido por D. Pedro Afonso, recuperamos a delimitação Norte: «In aquilone per uiam que ducitur ad sanctaren». Isto é: do Norte pela via que conduziu a Santarém.5 Este limite N (norte) do concelho de Pedrógão é, no terreno, o mesmo que passou a constituir o limite W (poente) do concelho de Castanheira de Pera, quando este foi desanexado em 1914.  Corresponde à cumeada Trevim – Cabril – Ortiga – Carregal Cimeiro, que se desenvolve no sentido norte/sul. Limite W que ainda hoje se mantem exatamente igual, fixando a divisória com a vizinha freguesia de Campelo. Em edição anterior 6 consignámos, além do mais, esta narrativa:

«Quando na chancelaria régia (1206) os signatários do foral disseram no documento «In aquilone per uiam que ducitur ad sanctaren», mais do que registar uma delimitação territorial, estavam porventura a pensar e significar para memória futura, as forças militares que, provindas do Norte, sob seu comando, por aqui transitaram em missões a Santarém (1147 e 1184) … via Chornudelos - Abdegas – Albardos – Pernes».   

Clareando a interpretação: na cumeada da Ortiga, passou uma força militar de D. Afonso Henriques com destino a Santarém em 1147 (tomada da cidade) e/ou 1184 (cerco da cidade). Dado o secretismo da missão (1147) o rei optou por itinerários desenfiados.  Já que estradas romanas para e de Santarém havia várias…

Numa hoste militar não basta considerar apenas a qualidade e nobreza dos cavaleiros. Há que prever e prover a situações de sede, fome, sono, doença. Carriagem, forragens, provisões, vitualhas, água. Guias, estafetas, mesteirais. Arraial. Em suma: logística.  


5| Logística.  Em todo o concelho de Castanheira de Pera a Ortiga de Cima, incrustada na serra, é a povoação mais próxima da via militar.  A explicação, para além dos mananciais, poderá encontrar-se no apoio logístico às forças reais, aqui constituído, aquando das ações militares na região durante a «reconquista». Mormente em 1147 à passagem da força provinda de Viseu, retemperando forças e agilizando a marcha para se juntar à hoste real em Chornudelos (Soure), rumo a Santarém.

Nestas ações militares decerto passaram na Ortiga godos, nobres, fidalgos. E terá sido então, aquando de tal apoio logístico que, por extensão semântica, com alguma metáfora à mistura, o conceito terá passado de fidalgos apoiados para mesteirais apoiadores, com assim nascendo o gentílico “fidalgos na Ortiga. A omissão no catálogo republicano tem explicação óbvia: tratava-se de conceito monárquico… Por outro lado, explicado fica também a ratio da costumada mensagem dos seniores segundo a qual «a Ortiga está no mapa». E o próprio topónimo Ortiga poderá ter origem numa arma de artilharia antiga que nessa época por aqui se tenha manuseado.8


6|Estudo. Pistas existem. Cientistas também. Vetusta de 8 séculos afigura-se que a histórica delimitação territorial «In aquilone per viam que ducitur ad santaren» de há muito podia estar devida e cientificamente estudada. Quiçá sinalizada no terreno. Para memória futura. Para contemplação no presente!

Fn


Notas de fim de página:

1-       Fonseca da Gama, Terras do Alto Paiva, 1940

2-       Monografia/2004/379

3-       Monografia/2001/115

4-       Monografia/2004/114

5-       Miguel Portela, Indícios de Cister em terras de Monsalude (Separata/56).

6-       Edição impressa 30/9/2018. Blogue «Crónica da Fraga», 1/10/2018

7-       Elise Cardoso, A logística Militar de Quatrocentos (Mestrado)

8-       Conclui-se como em 30/9/2018: «A demonstração dos factos históricos é quase sempre hipopéptica, sobretudo quando eles se situam numa época tão remota como o sec. XII. Aquilo que é possível, admissível, verosímil, hipotético ou provável, não se pode transformar em certeza», (José Matoso). É sob esta lição tudo o que de novo fica dito.

 

 

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 Texto in O RIBEIRA DE PERA edição impressa de 30 junho 2023

 

 

 

 

quinta-feira, 6 de outubro de 2022





ACERCA DA MUDANÇA DE GASES

CANALISADOS NOS CONDOMÍNIOS

   

A mudança de gases canalisados nos condomínios (propriedade horizontal) é um procedimento que nem sempre se afigura globalmente percecionado no seu percurso. Daí o trazer-se à colação alguns elementos porventura adjuvantes desse mecanismo. 


 1|Condóminos & consumidores.

 

Embora as qualidades de condómino e consumidor geralmente coexistam na mesma pessoa (condómino-consumidor) são, todavia, estatutos distintos. 

Há condóminos que não são consumidores (vg. todos os que prescindiram do gás e optaram por sistemas elétricos) e há consumidores que não são condóminos (vg. arrendatários, comodatários).

Num condomínio «Y», um, dois, três, n consumidores prescindiram do gás canalisado e optaram por equipamentos elétricos nas suas cozinhas (fogão e termoacumulador); posteriormente outros três ou quatro se lhes seguiram. Porém, mais tarde, alguns deles regressaram ao mesmo gás canalisado. Fizeram tudo isto livremente sem necessidade de qualquer autorização ou comunicação ao condomínio.  

Num condomínio «x» o vizinho da fração F deixou-se atrasar nas contas do gás até que o fornecedor demandou judicialmente, como devedores solidários a ele devedor F e também o seu condomínio com o fundamento de que gás consumido passara através da coluna montante comum.  Os vizinhos indignaram-se e o condomínio contestou alegando ser parte ilegítima por ser alheio ao contrato de fornecimento de gás.

São dois exemplos que enfatizam a independência entre consumidores e condomínio.

 

2| Coisas comuns & coisas privadas 

  

Num edifício em propriedade horizontal existem partes comuns (esfera comum) e coisas privadas (esfera privada).  As partes comuns e presumidamente comuns são as  previstas na Lei: Artº 1421º Código Civil (CC).  No demais são coisas privadas. 

O parqueamento automóvel na garagem é coisa comum, mas os veículos que aí estacionam são coisas privadas. Os elevadores são coisa comum, mas as mercadorias que por aí transitam são coisas privadas. As instalações gerais de água, luz e gás são coisas comuns, mas a água, a eletricidade e o gás que por dentro delas transita são coisas privadas.  A única instalação geral comum de conteúdo comum é a rede de esgotos. Ao condomínio cumpre a gestão e conservação das partes comuns, regular o seu uso e assegurar a sua fruição mediante as inspeções periódicas por entidades competentes (extintores de incêndio, elevadores, instalação de gás comum). No demais é coisa  da esfera privada. 

  

3| O gás consumido como coisa privada   


O caudal de gás que, vindo da rede no subsolo do passeio público, entra na rede geral do condomínio é propriedade privada do fornecedor até aos contadores.  Só ele pode acionar o fecho da válvula de corte geral à entrada do edifício e só ele é proprietário dos contadores instalados à entrada de cada fração, (Artº 9º/2/3/6 - DL 97/2017 de 10/8); Artº 9º/3 - DL 521/99 de 10/12). Dos contadores para dentro o gás é propriedade privada de cada consumidor que o contratualiza e paga. 

Portanto, temos um fornecedor privado e vários consumidores privados. Um único fornecedor privado e um feixe de contratos paralelos privados.

Mas não estamos aqui perante algum dos «serviços de interesse comuns» previstos no Artº 1424º CC, porquanto esses são oficiais, condominiais, pagos pelo condomínio. Aqui o gás é um serviço individual, privado, pago por cada um dos consumidores.

O condomínio é «terceiro» relativamente a estes contratos, (Artº 406º/2/CC).

 

4| Conversão & reconversão 

 

Pertinentes definições legais contidas, entre outras, no Artº 2º DL 97/2017 de 10/8:    

«Conversão», a operação que consiste em dotar um edifício já existente com uma instalação de gás» (alínea f).    

«Instalação de gás», o sistema instalado num edifício constituído pelo conjunto de tubagens, dispositivos, acessórios e instrumentos de medição, que assegura a alimentação de gás desde a válvula de corte geral ao edifício até às válvulas de corte dos aparelhos de gás, abrangendo essas válvulas, bem como alguma eventual extensão da tubagem a jusante destas». (alínea l). 

«Projetista», o profissional responsável pelo projeto da instalação ou das redes e ramais de distribuição de gás e pela definição ou verificação adequada e das características dos aparelhos a instalar, desde que habilitados nos termos da Lei nº 15/2015 de 16 de fevereiro». (alínea m). 

«Reconversão», a operação de adaptação de uma instalação de gás e dos respetivos aparelhos por mudança de família de gás combustível» (alínea n).  

Definições provindas da Portaria nº 361/98 de 26/6 – Regulamento Anexo (+Portaria 690/2001 de 10/7). Desta mesma Portaria, outras definições pertinentes vg:  canalete, coluna montante, família de gases, derivação de piso, tubagem embebida, válvula de ramal…

  

 5| Anos noventa. 

    A expansão do gás canalisado para fora da Grande Lisboa e a reabilitação urbana

 

Com a entrada do gás natural no mercado doméstico (1997) alargou-se a implantação de instalações para gás canalisado a cerca de 100 municípios do território continental.

·        Obrigatoriamente quanto aos edifícios novos;

·        Condicionalmente quanto aos edifícios antigos;

Tanto num caso como noutro trata-se de operar a conversão nos edifícios. Isto é, dotá-los de uma instalação para gás canalisado.

Com efeito,

 

a)     O DL 262/1989 de 17/8 determinou, além do mais, que a partir de 1 de março de 1990, todos os edifícios novos situados nas áreas concessionadas - Norte, Centro, Sul e Vale do Tejo - deviam incluir obrigatoriamente uma instalação geral de gás canalisado dimensionada para gás natural, (Artºs 1º, 18º e Anexo A).  

 

b)    Quanto ao parque habitacional antigo veio posteriormente a Lei nº 32/2012 de 14 de agosto, além do mais, com a 54ª alteração ao Código Civil, nesta parte assim:

      «Art.º 1425º

       ………………..

1- «Sem prejuízo do disposto nos números seguintes as obras que constituam inovações dependem da aprovação da maioria dos condóminos, devendo essa maioria representar dois terços do valor total do prédio.

2- «Havendo pelo menos oito frações autónomas, dependem da aprovação por maioria dos condóminos que representem a maioria do valor total do prédio as seguintes inovações:

a)      ……………………

b)    Instalação de gás canalisado».

  

A verdadeira 54ª alteração consiste neste nº 2 alínea b), visto que o nº 1 já vem desde a versão inicial do Código 1966 e que assim se manteve.    

Esta alteração constitui uma das várias medidas tomadas pela Lei nº 32/2012 de 14 agosto no sentido de «… agilizar e dinamizar a reabilitação urbana … edifícios e frações… cuja construção tenha sido concluída há pelo menos 30 anos…». (Artº 1º)

No relatório do DL 53/2014 de 8/4 foram referidos cerca de dois milhões de fogos a necessitar de recuperação, cerca de 34% do parque habitacional nacional.

  

6|  Reabilitação urbana. Interpretação global


Atento o critério de interpretação contido no Artº 9º CC - pensamento legislativo, unidade do sistema jurídico, circunstâncias da época - esta norma Artº 1425º nº 2 b) CC não pode ser tida isoladamente, mas interpretada globalmente com a Lei 32/2012 - de cujos Art.º 1º e 5º emana – e globalmente ainda com os sucessivos diplomas sobre instalação de gás canalisado, nomeadamente:  

DL 262/1999 de 17/8 – relação municípios abrangidos (anexo A);

DL 521/1999 de 10/12 – atualiza e substitui o DL 262/1999;

DL 53/2014 de 8/4 – reabilitação urbana, dispensas; (DL 95/2019).

Lei nº 15/2015 de 16/2 – estatuto das EI, EIG, EIC, projetistas e outros profissionais;

DL 97/2017 de 10/8 – definições, instalação gases, consolidação legislação;  

Ainda sob critério do Artº 9º CC, aquando discussão do projeto deste Artº 1425º nº 2 b) CC, decerto também se confirmou manter-se a unidade do sistema jurídico no Código, visto:

a)     Tratar-se globalmente de benfeitorias necessárias (Artº 216º CC).

b)     Sem contratos de gás anteriores a considerar (Art.º 405º e 406º CC).

c)     Sem prejuízo algum para as coisas próprias de qualquer condómino (Artº Artº 1425º nº 7, antes nº 2 CC).

 

Então, agilizando, bem andou o legislador da 54ª alteração CC em descer a condição maioria qualificada de 2/3 (nº 1), para a simples maioria absoluta 50+1 (nº 2).  

No relatório do DL 53/2014 de 8/4 são referidos cerca de dois milhões de fogos a necessitar de recuperação, cerca de 34% do parque habitacional nacional.

Nota - já se tem escrito, inadvertidamente, que a locução adverbial «pelo menos» significa «até». Negativo. A locução significa «no mínimo oito». Mas podem ser nove, dez, doze, «n» frações.  

  

7| Âmbito de aplicação  do Artº 1425º nº 2 alínea b) CC ex vi Artº 9º CC

 

Porém, esta norma contida no (nº 2) é uma regra especial relativamente à regra geral contida no nº 1 do mesmo Artº 1425º CC.

O seu âmbito de aplicação esgota-se no momento em que, prontas as obras de conversão - projetadas, edificadas, inspecionadas, certificadas - são colocadas à disposição dos consumidores privados.  Finda, nesta parte, a reabilitação urbana.

Globalmente não se vislmbra maior alcance. 

De resto o DL 97/2017 definiu claramente os dois campos.

Trata-se de momentos distintos, factualidade distinta, inovações distintas.

Donde subsunção jurídica distinta:  

Ø  Conversões - Artº 1425º nº 2 CC (reabilitação urbana)

Ø  Reconversões - Artº 1425º nº 1 CC (mudança de contratos)

 

8|  Mudança de gás. Reconversão

    Dois terços de condóminos + consenso dos consumidores

 

Regra geral do Artº 1425º nº 1 CC. Num condomínio vg com 20 fogos metade prescindiu do gás, optando por sistemas elétricos. A outra metade manteve o gás, mas agora está toda de acordo em mudar de família.  Pode fazê-lo só si com a sua unanimidade? Negativo. Não, porque para se operar a mudança de gás num condomínio é necessário operar na instalação geral que é coisa comum. 

A assembleia de condóminos terá de autorizar as obras e o orçamento da inovação mediante deliberação aprovada por uma maioria não inferior a 2/3 do valor do total do prédio (Artº 1425º nº 1 CC).  Não é a circunstância de algum marketing interessado sub-rogar as despesas que faz descer o critério legal. Neste «valor total do prédio» reside a legitimidade de todas as frações (comerciais e habitacionais) estarem presentes na reunião. Mas a unanimidade dos consumidores também interessa. Maioria de 2/3 para a coisa comum, consenso para a coisa privada. Nenhuma incoerência, há casos em que uns são mais que outros.  A mudança de gás (reconversão) é antes de mais um acordo para a mudança de contratos privados. É certo que existe uma única instalação de gás comum, mas também é certo que todos os contratos que sucessivamente se foram constituindo ao longo do tempo são compatíveis entre si (Artº 407º CC).   

Contratos esses todos com igual proteção jurídica assegurada, além do mais, pela sua legalidade, (Artº 280º), liberdade contratual, (Artº 405º), eficácia (Artº 406º), compatibilidade, (Artº 407º CC), meios próprios de resolução, (Artº 432º CC).

Então estamos perante um fornecedor de gás privado e vários consumidores privados.

·        Um feixe paralelo de contratos individuais, independentes, privados,  (corpus)

·        Um feixe paralelo de vontades, individuais, independentes, livres, (animus)

 

Como cada vontade é individual, independente, livre…  necessário se torna o consenso de todas as vontades para se trocar um fornecedor por outro.  

Não se trata aqui duma (oficial)  unanimidade condominial no âmbito dos Artº 1419º/1 CC e Artº 1432º/8 (antes 5) CC, mas dum (privado) consenso contratual resultante da natureza privada do negócio assumido pelos consumidores. 

 

9| Então basta um consumidor para obstar ao procedimento?

 

O caso será porventura raro, visto que geralmente se cultiva a concertação, boa vizinhança e bom senso. Mas, verificando-se, certamente que sim.

Com efeito, cada consumidor é senhor do seu contrato,

       

·        O seu contrato está tão protegido por lei quanto os demais. Se alguns prescindem, assunto deles.  (Pacta sunt servanda).

·        Ele não está a bloquear alguém, mas tão só a exercer um direito (Artº 255º nº 3 CC). 

·        Para haver consenso tem de haver acordo de vontades (Artº 232º CC).         

·        Não existe norma alguma que permita a um condomínio revogar ou denunciar contratos privados dos seus consumidores.

·        Aliás, o condomínio é «terceiro» relativamente a estes contratos privados de fornecimento de gás, (Artº 406º nº 2 CC). 

·        Não existe incompatibilidade alguma no uso da instalação comum (Artº 407º CC).

·        Considerações de ordem social já o legislador deixou a montante.

·        Processualmente qualquer condómino (basta um) pode impugnar deliberações irregulares (Artº 1433º nº 1 CC).

Não obstante acontece alguns condomínios poderem forçar a mudança pela via duma deliberação da assembleia. Neste caso importa ao consumidor  ofendido estar consciente de que tem o prazo de 60 dias para impugnar judicialmente a deliberação, sob pena de se haver de conformar com ela. 

 

 10| Ónus da conformação ou da impugnação

 

As assembleias de condóminos só devem deliberar sobre assuntos relativos às partes comuns (esfera comum), mas não raro exorbitam essa competência para invadir a esfera privada dos consumidores como que se de coisa comum se tratasse. 

Também na área do gás. E às vezes com patrocínio de algum marketing interessado em todos os consumidores, mas que nesta fase se basta com uma deliberação por simples maioria absoluta (50+1), senão mesmo agora (pós Lei 8/2022) por simples quantidade consensual de um quarto (25%), com assim carregando sobre os demais condóminos e consumidores o ónus da conformação ou de impugnação.  

Corre pelos condomínios a ideia de que a assembleia de condóminos é soberana. Esta ideia é verdadeira quando a assembleia é convocada, funciona e delibera de conformidade com o direito em vigor. Caso contrário, a ideia é falsa. E pode ser impugnada. Só que, diferente do que acontece noutros domínios, não predomina nos condomínios a cultura da impugnação judicial das deliberações ilegais. Poderá haver altercação, cizânia, inércia inadvertida…  enquanto o prazo de impugnação se vai esgotando.  E, esgotado, a acta como que “transita em julgado" e as deliberações nela contidas, ainda que irregulares, tornam-se obrigatórias para todos!  

Entretanto, o marketing prossegue o seu interesse. Portador da acta, a título de gestão de negócios (Artº 464º CC), envia cartas de rescisão ao ainda fornecedor e designa data posterior para a mudança. E nesta data, dentre a vária documentação, dá a assinar a cada consumidor o contrato novo e a rescisão do contrato velho; contrato novo… contrato velho… contrato novo… contrato velho. E a final o número de contratos novos é exatamente igual ao número de contratos velhos, com assim demonstrado ficando a unanimidade de consumidores. E a natureza privada, individual dos contratos.

Para trás poderão ter ficado alguns consumidores que, na circunstância, prescindem do gás e optam por sistemas elétricos. 

  

11| Crucial o prazo de 60 dias pós assembleia  

 

As normas a considerar na convocação e funcionamento da assembleia de condóminos constam, essencialmente, dos:

·        Art.º 1430º a 1432º CC – convocação e funcionamento da assembleia;

·        Artº 1433º - impugnação deliberações;

·        Decreto-Lei 268/94 de 25/10, republicado anexo Lei 8/2022, além do mais, sobre as actas e cominação (consequência) da falta de impugnação (Artº 1º nº 4).  

Na convocatória e funcionamento da assembleia já podem ocorrer irregularidades processuais, suscetíveis de impugnação. Será matéria a conferir.

Quanto à questão de fundo - concordância x discordância da deliberação - cruciais são os 60 dias imediatos à reunião, (Artº 1433º nºs 1 a 4 CC).

Prazo contínuo, que corre mesmo em férias judiciais.

E aqui, antes do prazo findar, de duas uma: 

 

a)  Ou toda a gente se conforma – concorda, aceita - e a deliberação como que “transita em julgado”, passando a vincular erga omnes, nestes termos:  

 

«As deliberações devidamente consignadas em acta são vinculativas tanto para os condóminos como para os terceiros titulares de direitos relativos às frações»

(Artº 1º nº 4 do DL 268/94 de 25/10, republicado pela Lei nº 8/2022 de 10/1)

 

b)  Ou alguém (qualquer condómino consumidor) discorda e, tudo ponderado, interpõe acção judicial de impugnação ao abrigo do preceituado no Artº 1433º nº 1 a 4 in fine CC e Artº 1437º 1 CC.   Sendo que a petição inicial terá sempre de dar entrada em juízo dentro do prazo de 60 dias, mesmo que este ocorra em julho/agosto (férias judiciais de verão). Trata-se de uma simples acção declarativa, subscrita por mandatário judicial, que naturalmente terá as suas custas. Questão de se ponderar o que está em causa. (Há casos em que o marketing oferece apoio judiciário mesmo inter condóminos. Ingerência nos assuntos internos do condomínio). 

Constar que as deliberações da assembleia só ficam «devidamente» consignadas em acta quando, decorrido o prazo 60 dias ninguém as impugna, ou quando, havendo impugnação judicial, o tribunal as venha a confirmar por sentença transitada em julgado. Até lá tanto podem estar devida como indevidamente consignadas.   

 

 12- Segue-se esquema:




13| A Inovação consiste na substituição da cabeça   

 

Reconversão. Com recurso à metáfora figura gramatical, (catacrese), dir-se-á que a instalação geral de gás nos condomínios é composta por cabeça, tronco e membros.  

Nos casos de reconversão a inovação consiste em substituir uma cabeça por outra.

Conquanto invertido no terreno, o corpo da instalação geral de gás é composto por:

 

·        Cabeça = Ramal de ligação à rede, caixa de corte geral, ligação à rede interior;

·        Tronco = coluna montante (vertical de baixo para cima).

·        Membros = ramais de ligação da coluna montante às frações (em cada piso).

      Pelo tronco e membros só circula o gás que a cabeça permitir.

 

A primeira instalação geral de gás num edifício novo ou recuperado (conversão) obedeceu a um projeto inicial aprovado, executado, inspecionado, certificado.  Usada.  Com a mudança de tipo de gás (propano por natural ou vice-versa) esse projeto inicial é substituído por outro aprovado, executado, inspecionado, certificado na parte tocante à cabeça.

É o que resulta, além do mais, do estatuto dos profissionais projetistas consolidado nesta área, nomeadamente:

DL 262/89 de 17/8 – Artº 4º;

DL 521/99 de 10/12 – Artº 4º;

Lei 15/2015 – Artº 32º - Estatuto;

DL 97/2017 de 10/8 - Artº 2º/m), Artº 5º nºs 1 a 6; Artº 7º/3.

Portaria 361/98 de 25/6 e alterada pela Portaria nº 690/2001 de 10/7. 

Como preceitua o Artº 1425º/ 1 CC as inovações concretizam-se mediante obras, obras que, nesta área do gás, são executadas por profissionais da EI, referidas, além do mais, no Artº 7º/2 do DL 521/99 de 10/12 e Artº 5º/g da Lei 15/2015 de 16/2. 

Vejamos agora a cabeça duma instalação de gás:

 

14| A cabeça da instalação:




(Imagem internet: EDP, Galp, Endesa, outras).


Esta imagem representa a cabeça da instalação geral de gás do edifício.

Neste caso tratou-se da mudança de gás propano para gás natural.

 

Ficou assim:   

1| Rede de distribuição de gás natural (GN).    

2| Ramal de ligação da rede distribuição (1) à caixa corte geral (4).       

4| Caixa de corte geral, no limite da propriedade, junto da entrada no edifício.

3| Ligação à rede interior e por canalete.       

  

Dantes a outra cabeça no terreno estava assim:

                                    

1| Rede de distribuição de gás propano (GPL).

2| Ramal de ligação da rede distribuição (1) à caixa corte geral (4).

4| Caixa de corte geral embutida na parede.

3| Ligação à rede interior por dentro da caixa embutida.


  

15|  Da maqueta para o terreno:



Dantes linha preta gás propano. Depois linha azul gás natural.


16.  Reconversão. Relatórios finais


As despesas com inovações ficam a cargo dos condóminos (Art.º 1426º CC).  Acontece algum marketing interessado oferecer «campanha isenta de custos de adesão». (Termo ambíguo suscetível de diferentes leituras).  

Concretizada a reconversão ficam os certificados das EI e EIG.

Relatório de obras. Posteriormente será elaborado o relatório de obras (Artº 5º g) Lei 15/2015) donde conste, além do mais, a ratio necessária da caixa de corte geral e o canalete ficarem à vista e não encastrados na parede como estavam dantes, (Artº 10º DL 521/99). Material conexionado com o arranjo estético dos edifícios (Artº 1422º/3 CC), bairro e segurança das instalações, (Artº 277º/1/c CP).

Relatório de contas. A prestação (pagamento) pode ser feita por terceiro interessado (Artº 767º /1 CC) - marketing - que assim fica legalmente sub-rogado (Artº 592º/1 CC) no crédito (credor). E a poder repercutir.

Destes relatórios deve ficar cópia em arquivo dos condomínios.

Para memória futura. Para escrutínio futuro.

Francisco H. Neves

  LAUS DEO !

                                                                                                                                                              

 

JURISPRUDENCIA 

Propriedade horizontal – mudança de gás – unanimidade  

1. «A conduta de gás integra a instalação geral de gás, sendo, por isso, parte necessariamente       comum   do edifício em regime de propriedade horizontal.

2.    Uma coisa é a afetação da coluna central ou geral ao transporte de gás canalisado então disponível – propano – e em função do qual os condóminos celebraram contratos de abastecimento e adquiriram os seus equipamentos domésticos de queima, outra diferente é a reafectação duma mesma coluna de distribuição de gás ao transporte de uma outra nova espécie de gás entrada, entretanto, na comercialização.

3.    As alterações a fazer no imóvel em função da adoção de novo fornecedor constituem inovação     que apernas pode ser deliberada pela unanimidade dos condóminos».                                                                                                                   

(Ac. Rel. Lisboa de 8/5/2014 in CJ/2014/III/89. 

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Propriedade horizontal – mudança de gás – maioria simples


1.    «A mudança do tipo de gás fornecido a um prédio constituído em prosperidade horizontal não constitui inovação para efeitos do Artº 1425º do Código Civil, podendo ser deliberada por maioria dos condóminos, nos termos previstos no nº 3 do artigo 1432º do mesmo diploma.

2.    Na verdade, podendo a instalação de gás canalisado ser deliberada por tal maioria, nos termos previstos na alínea b) do nº 2 do artigo 1425º, na redação introduzidas pela lei nº 32/2012 de 14 de Agosto, seria incongruente exigir maioria mais robusta para a simples mudança de gás consumido no prédio».


(Ac. Rel. Lisboa 10/3/2015 in www.dgsi.pt  e CJ/2015/II/304)



P.S.

1) Há 3 proprietários, em partes iguais, (3 condóminos) dum edifício em propriedade horizontal com 12 frações, cada uma com o seu contrato, do mesmo gás.   Um dos proprietários mora no edifício (1 fração). As restantes 11 frações estão arrendadas. Qual a maioria necessária para mudar de gás no edifício, à luz desta jurisprudência ? (16/10/2022) 

2) Em síntese: O princípio geral é o de que a mudança de gás é uma QUESTÃO DE CONSUMIDORES e não de condóminos.  Os condóminos só são necessários para autorizar as obras nas partes comuns mediante uma maioria de 2/3. 

Tomemos um edifício com 10 frações habitacionais todas arrendadas, com cada locatário titular do seu contrato individual de fornecimento de gás. Esta mudança carece do CONSENSO de todos os CONSUMIDORES e da maioria de 2/3 dos comproprietários.  (26/12/2023).   FN

 

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